terça-feira, 26 de maio de 2009

“Eu não vou!”
Ele bateu a bengala tão forte no chão que o interfone tocou.
“Não, está tudo bem, foi meu pai... isso, com a bengala de novo... não, ele não vai.”
Saí logo em seguida, é a minha quinta visita ao velho sem que eu o convença a mudar daquela casa cheirando a jornal, maldito cheiro que ele insiste em dizer que era o da minha mãe.
Já estou ficando conhecido no prédio e na rua, tomo sempre um café com o porteiro quando estou saindo da casa: “é Jorge, eu já não sou jovem também, vou me aposentar esse ano, mas tenho a terrível sensação de que o “Velho” é mais lúcido que eu, mesmo com toda aquela teimosia”.
E quando saio de lá, o jornaleiro: “Seu Felipe, como vai o velho? Turrão como sempre?... Ah aquele lá não tem jeito, quando eu era garoto ele dava umas bengaladas na gente se deixasse a bola cair na sacada...”.
Eu sempre sorria, parava, conversava... Descobri que meu pai não é impenetrável como pensava, na verdade toda aquela rua girava em torno dele e do seu ranço pelo mundo, aquelas pessoas amavam o meu pai e eu, aprendia a amá-lo por elas. “Quarta feira eu volto, vai saber se ele não muda de idéia”.

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Escada em Espiral

...Ele tentou ignorar, mas ela o chamou ainda mais alto, acabou tendo que voltar para cumprimentá-la.
-Oi, há quanto tempo! Nunca mais o vi por ai...
-Andei viajando – respondeu em um tom meio duvidoso. - ela riu; sabia que ele havia mentido.
-Legal! Foi para onde?
-Na verdade não estava exatamente viajando, estava em Teresópolis...
-E como estão todos por lá? Foi fazer o que lá?
-Bem, bem. Quase não os vi, indo e voltando pro Rio todo dia por causa do trabalho, chegava muito cansado em casa e ia direto dormir. Fui colocar a cabeça no lugar, dar uma descansada, acabei ficando quase três meses. E você?
-To bem! Abri outra loja... Vamos lá pra casa, tomamos um café e colocamos o assunto em dia, ainda moro aqui perto, no mesmo lugar. – Joaquim tentou pensar em alguma coisa pra recusar o convite, mas nada lhe ocorreu , acabou aceitando com um aceno de cabeça.



-Hahahahaha – ela riu no momento em que lhe entregava a xícara – Sabia que você ia se sentar ai. Você sempre sentava ai na escada quando conversávamos madrugada adentro.
-Tem alguma coisa reconfortante na sua escada, nunca soube explicar o que é.
Ela parecia muito confortável com a situação, falava e ria com naturalidade, enquanto Joaquim se esforçava terrivelmente para sorrir e levar o assunto adiante.
-Voltou quando de Tere?
-Hoje mesmo, na parte da manhã – de nada adiantou ter ficado lá tanto tempo pra hoje acabar encontrando com você, ele pensava.
-Sentiu saudade do calor daqui, né? Você ia à praia sempre que podia!
-É verdade e acabei enjoando de subir e descer todo dia, leva-se muito tempo só fazendo isso.
-Tô vendo, não sobrou tempo nem pra você fazer a barba – Joaquim levou a mão no rosto e só então percebeu como estava barbado. De repente assustou-se, Larissa havia repousado a cabeça no seu ombro, ela nunca havia sentado ao seu lado na escada. – Acho que entendi o que você quer dizer com o lance reconfortante que minha escada tem. – Ele terminou o café que restava e com um movimento suave afastou a cabeça dela do seu ombro, deixou a xícara em cima da mesinha de centro e saiu.

terça-feira, 12 de maio de 2009

O velho dos olhos amarelos

O velho passeia com o cachorro,
Que melancolia!
(É Belo Horizonte e ele sobe o morro)
Seu cão é sua única companhia

O peito dói a cada passo
E o cão não é mais do mesmo porte
Mas veja o olho, ainda aço,
De quem já causou alguma morte.

Pela tarde puxa o charuto
O cheiro que nunca perdeu
E tenta sofrer algum luto
Pela vítima que esqueceu.

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Post explicativo (3)

Para não pensarem que só existem velhos necessariamente conservadores e que o café é símbolo das grandes propriedades e coronéis... temos a prova que este também pode ser bebido por Che Guevara e seus adeptos!
E, no mesmo clima, abaixo uma poesia muito, muito bonita, do poeta cubano Eliseo Diego (1920-1994):

TESTAMENTO

Habiendo llegado al tiempo en que
la penumbra ya no me consuela más
y me apocan los presagios pequeños;

habiendo llegado a este tiempo;

y como las heces del café
abren de pronto ahora para mí
sus redondas bocas amargas;

habiendo llegado a este tiempo;

y perdida ya toda esperanza de
algún merecido ascenso, de
ver el mar sereno de la sombra;

y no poseyendo más que este tiempo;

no poseyendo más, en fin,
que mi memoria de las noches y
su vibrante delicadeza enorme;

no poseyendo más
entre cielo y tierra que
mi memoria, que este tiempo;
decido hacer mi testamento.
Es
éste: les dejo

el tiempo, todo el tiempo.

sábado, 2 de maio de 2009

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Completava oitenta anos. Levantou-se cedo e ficou fitar o seu reflexo no espelho por um longo período, sorriu um sorriso amarelo e desceu para o café da manhã.
A comemoração começou no almoço, com todos os filhos e netos presentes e com os amigos restantes. De presente surpresa seus filhos, músicos, assim como o pai, haviam preparado uma pequena apresentação, iam tocar uma composição do aniversariante (a favorita dele, que tinha feito anos atrás pra sua esposa), uma música que não ouviam há 20 anos.
No inicio da música o velho até tentou sorrir, mas o ritmo novo que seus filhos impunham o deixou mal-humorado. “Se queriam estragar alguma música minha que estragassem, mas não essa”- pensava o velho, agora, ainda mais velho. Ao notar a insatisfação do pai os músicos pararam de tocar. O velho levantou-se e caminhou até eles, tomou o atabaque do filho mais velho. Segurou o instrumento com aquele ar ranzinza de quem sabe das coisas, sentou-se e numa batida forte ditou o verdadeiro ritmo da música. Batia rápido como se tivesse mais de duas mãos
Mas ao término da canção devolveu o atabaque ao filho e dirigiu-se ao seu quarto com uma leve expressão de satisfação e seus costumeiros passos cansados.